
A Netflix adicionou neste domingo (15) a seu menu o documentário que eu levaria para uma ilha deserta: Edifício Master (2002), de Eduardo Coutinho.
Mestre dos documentários, Coutinho morreu aos 81 anos, em 2 de fevereiro de 2014. A notícia de sua morte provocou um duplo choque. Primeiro, pela forma em si; segundo, por seu autor.
O paulistano Coutinho foi assassinado dentro do apartamento onde morava, no bairro da Lagoa, zona sul do Rio, a facadas — desferidas por um filho seu de quem pouco se sabia, Daniel, 41 anos. Em um surto provocado pela esquizofrenia, Daniel também esfaqueou a mãe, Maria das Dores, 62 (que sobreviveu aos golpes no peito e no abdômen), e tentou se matar.
À época, a produtora de cinema Vera de Paula contou que Coutinho procurava ajudar o filho, que também era dependente de drogas, empregando-o em seus filmes: "Ele colocava o filho na equipe, levava para as filmagens, tentava ajudar, mas sempre dava confusão. Coutinho era discreto, mas sabemos que sofria muito com essa situação".
Incluindo o póstumo Últimas Conversas, de 2015, Eduardo Coutinho deixou 15 longas e sete médias-metragens, a maioria deles documentários, depois de um início na ficção (O Homem que Comprou o Mundo, de 1968, e Faustão, de 1972). A primeira de suas grandes obras foi Cabra Marcado para Morrer (1984), que ganhou o troféu da Federação Internacional dos Críticos de Cinema (Fipresci) no Festival de Berlim (veja, mais abaixo, onde assistir aos títulos do diretor).
O filme é uma narrativa semidocumental da vida de João Pedro Teixeira, um líder camponês da Paraíba assassinado em 1962. Por causa do golpe militar em 1964, as filmagens foram interrompidas — parte da equipe acabou presa sob a alegação de "comunismo". Dezessete anos depois, Coutinho retomou o trabalho, recolhendo depoimentos dos camponeses que participaram das primeiras filmagens e também da viúva de João Pedro, Elizabeth, que desde dezembro de 1964 vivia na clandestinidade, separada dos filhos.
Entre seus títulos mais premiados, estão Santo Forte (1999), sobre a religiosidade popular em uma favela no Rio de Janeiro, e Peões (2004), que ouve, no presente, os anônimos metalúrgicos que participaram no passado das greves do ABC paulista.

Nos últimos anos da carreira, as obras do cineasta escapavam à própria qualificação simples de "documentários", testando os limites entre documento, narrativa e ficção. Vide Jogo de Cena (2007), em que mulheres anônimas e atrizes como Fernanda Torres, Marília Pêra e Andréa Beltrão compartilham e interpretam histórias reais.
O trabalho de Eduardo Coutinho caracterizava-se pela sensibilidade em retratar nas telas pessoas comuns — em O Fim e o Princípio (2006), por exemplo, deu voz a uma comunidade no sertão nordestino. Usando câmeras portáteis digitais, o diretor se aproximava de seus entrevistados sem se preocupar com restrições de espaço e tempo, transformando conversas com personagens anônimos em acontecimentos impactantes.
Coutinho tinha a habilidade para encontrar e ouvir o que chamava de pessoas interessantes: "A mais interessante é aquela que não só conta coisas interessantes mas que sabe como contar", disse em 2005 a Eduardo Veras, então jornalista de Zero Hora e hoje professor do Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). "Se a pessoa consegue se expressar com força, do ponto de vista do vocabulário, da sintaxe, da construção da frase e, ao mesmo tempo, entra no jogo, porque a entrevista é um teatro, um jogo, essa é uma pessoa interessante. Se você está num ônibus e uma pessoa, sentada atrás de você, começa a contar uma história, às vezes você fica fascinado, sem ver o rosto dela, não apenas pelo que ela conta, mas pelo jeito como conta. Às vezes, você encontra uma pessoa, ela te conta um fato, ela é muito chata, o que ela conta é chato, você quer se livrar dela... É como contar uma anedota, alguns sabem. Outros não", completou.

Mesmo sendo um veterano de muitas entrevistas, Coutinho ficou emocionalmente abalado ao realizar Edifício Master, como disse em conversa com Roger Lerina publicada na Zero Hora de 6 de dezembro de 2002: "Em Edifício Master, um prédio claustrofóbico, você pegava uma equipe de meia dúzia de pessoas, batia na porta, você entrava filmando e de repente, em 15 minutos, o cara te entregava uma coisa da vida dele. No fim do dia, depois de falar com cinco pessoas, você está exausto. São tantas lembranças que você chega ao final do dia encharcado de experiências de vida".
Edifício Master é de um dos filmes mais aclamados do diretor. Foi eleito o melhor documentário pela crítica na Mostra Internacional de São Paulo, ganhou o Kikito da categoria no Festival de Gramado e mereceu uma menção especial no certame de Havana, em Cuba.
Retrato das variadas formas de solidão das grandes cidades, o filme é resultado de três meses de convivência de Coutinho em um prédio de classe média com 276 apartamentos localizado no bairro de Copacabana, no Rio. O diretor conversou e, especialmente, ouviu 37 moradores, que compartilham suas histórias de vida, suas pequenas felicidades e suas perenes frustrações.
Sem um roteiro de perguntas predeterminado, ali Coutinho pôde exercer a arte de "tentar conseguir a frase ou o gesto irrepetível", como definiu em uma entrevista de 2005. O diretor queria que acontecesse "aquela sensação de milagre, em que o entrevistado só descobre o que quer dizer quando está falando".

Em Edifício Master, Coutinho não estava interessado em traçar um perfil da classe média brasileira, não queria nada "típico", porque "o típico é a morte do singular". Classificou seu filme como um jogo teatral: "Eu jogo e os entrevistados jogam. Você tem que estar nu de preconceitos para ouvir as pessoas. O que me interessa não é a informação, é a experiência. A memória é a coisa mais mentirosa que existe".
Pois bem: uma das personagens, a jovem Alessandra, se assume como mentirosa, mas garante que só disse a verdade diante da câmera.
Outra mulher, Daniela, quase não olha para a câmera. Conversa com Coutinho evitando o olho no olho. Ela justifica: "Tenho problemas de neurose e sociofobia. A aglomeração típica do vaivém em Copacabana faz com que eu chegue em casa muito estressada. Eu não sei se são pessoas demais, ou calçadas muito estreitas. Ou se é uma fusão desagradável dos dois elementos. Eu sei que pode ser feio, tá? Mas, muitas vezes, fico contente quando subo e desço no elevador sozinha".
Há personagens que transformam a conversa em um espetáculo. Como o viúvo aposentado Henrique, que se apropriou de uma canção imortalizada por Frank Sinatra, My Way, como lema de sua vida.

Há quem aproveite o foco para fazer uma espécie de discurso político, como a imigrante espanhola Maria Pia, para quem as pessoas estão desempregadas porque querem, porque são preguiçosas.
Instantes antes, Coutinho visitara José Carlos e Dalva, que fizeram questão de preparar uma tábua de frios para recepcionar o diretor e sua equipe. Sem rodeios, José Carlos diz que é contador, mas que no momento está "fazendo freelancer em algum lugar", se desdobrando para resolver os problemas das pessoas ao mesmo tempo em que tentar garantir a sua sobrevivência.
Todos os personagens têm algo a dizer, e cada um pode nos pegar de alguma maneira, conforme o nosso estado de espírito e a nossa maturidade. É por isso que levaria Edifício Master para uma ilha deserta: o filme tem o poder de despertar emoções variadas, e sempre há algo novo a observar na linguagem corporal dos entrevistados, sempre há algum detalhe a despontar naquelas confissões, diria que mesmo assistindo pela quarta ou quinta vez sempre haverá uma surpresa a ser descoberta, uma lembrança comovente, um discurso engajante, um gesto eloquente.
Essa era a marca registrada de Eduardo Coutinho, como escreveu o cineasta Carlos Gerbase à época da morte do documentarista: "a habilidade para fazer suas personagens vencerem seus medos e abrirem o coração, explicitando seus sentimentos mais íntimos, numa cumplicidade que vai nascendo aos poucos, naturalmente, mas que de repente pode se manifestar de forma dramática".
Outros filmes de Eduardo Coutinho no streaming
Cabra Marcado para Morrer (1984)

Narrativa semidocumental da vida de João Pedro Teixeira, um líder camponês da Paraíba assassinado em 1962. (Canal CurtaOn do Amazon Prime Video)
Babilônia 2000 (1999)

No último dia de 1999, moradores de duas favelas do Rio refletem sobre suas trajetórias e falam sobre seus medos e suas esperanças para os próximos anos. (Netflix)
Santo Forte (1999)

Documentário sobre a religiosidade popular em uma favela no Rio de Janeiro. (Netflix)
Peões (2004)

Eduardo Coutinho ouve, no presente, os anônimos metalúrgicos que participaram no passado das greves do ABC paulista. (Globoplay)
O Fim e o Princípio (2006)

A vida e as ideias dos moradores de Sítio Araçás, pequena comunidade no sertão da Paraíba, da qual o "progresso" passa ao largo. (Globoplay)
Jogo de Cena (2007)

O diretor embaralha os limites entre documentário e ficção enquanto mulheres anônimas e atrizes como Fernanda Torres, Marília Pêra e Andréa Beltrão compartilham e interpretam histórias reais. (Netflix)
As Canções (2011)

Dezoito pessoas contam as histórias mais marcantes de suas vidas e cantam as músicas com as quais identificam esses episódios. (Netflix)
Últimas Conversas (2015)

No seu último documentário, Coutinho fala com estudantes de escolas públicas. (Netflix)
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